Coletivo usa literatura de cordel como ferramenta de combate ao preconceito sexual

Projeto Lampioa/divulgação


Quando o escritor pernambucano Liêdo Maranhão lançou a primeira edição de Classificação popular da literatura de cordel, em 1976, machismo e preconceito eram elementos comuns na cartilha da maioria dos cordelistas. Sem constrangimento, eles próprios indicavam tais características ao pesquisador, grande conhecedor desse universo. “Enquanto todos nós conhecemos os folhetos como um bando de eruditos de gabinete, Liêdo vive e convive com todo o seu estranho, pobre, fascinante, mágico e duro mundo”, apontava, no prefácio, Ariano Suassuna.

Uma das categorias identificadas no livro – reeditado ano passado, pela Cepe – é a dos “folhetos de cachorrada ou descaração”, da qual fazem parte O rapaz que casou-se com um cabeludo pensando ser uma moça, de Minelvino Francisco Silva, e A mulher que casou-se com outra em Casa Amarela, de H. Rufino. Este último narra a união entre mulheres como algo obsceno, de causar espanto: “Hoje até homem dá luz/ Rapaz se pinta à carmim/ Uma moça esposa outra,/Fica outra achando ruim/Irmã pare de irmão/Nessa grande corrupção/O mundo vai levar fim”.

H. Rufino morreu na década de 1960. Ariano e Liêdo, este ano. Não viveram o suficiente para ver o formato e a estética do cordel serem usados para combater a homofobia de maneira incisiva. Não viram o “cabra macho” Lampião se tornar fêmea para dar nome a um projeto de celebração da diversidade sexual. Organizado pelo jornalista Bruno Castro e pelo designer João Zambom, o projeto Lampioa reune mais de 40 artistas, escritores e ilustradores em torno da criação de quatro fanzines com cara de cordel.


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“São poesias, palavras rimadas, imagens gravadas e o desejo de unir novos olhares e diferentes formas de expressão sobre gêneros e sexualidade. Os fanzines colecionáveis são produzidos sob a dura e lúdica estética cordelista, originados a partir da fantasia crítica e criativa de artistas da nossa geração”, define Zambom. Os folhetos podem ser acessados em www.lampioa.com.

Cearense radicado no Recife, o poeta Allan Sales, autor de mais de 200 cordéis, considera natural a resistência de algumas visões preconceituosas de mundo. “É um espaço literário totalmente machista, pesado, mesmo, fundamentado na exaltação da figura masculina. Também vejo traços de homofobia, mas é normal, pois reflete o imaginário popular”. A temática preferida do escritor é a política social, com crítica à corrupção e ao populismo.
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Editor do site Interpoética, o pernambucano Sennor Ramos acredita em uma mudança gradual no conteúdo dos folhetos tradicionais. Para ele, a literatura de cordel já foi muito mais machista e preconceituosa. “Hoje em dia está mais consciente, embora fale sobre os mesmos temas. Ainda é comum encontrar cordelista homofóbico. Quem costuma fazer diferente são as mulheres escritoras”.
Já o cantador Clécio Rimas, autor de cordéis como Sustentabilidade, destaca o preconceito sofrido pelo próprio cordel, geralmente classificado como literatura menor, por tratar de assuntos populares e utilizar impressão de baixa qualidade. “Há preconceito por toda a parte. Cabe às pessoas mudar isso. Usar o cordel para combater a homofobia é algo muito válido, porque cada ser humano precisa ter liberdade de escolhas. Vale mais o amor”.

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TRECHOS>>>>>>>>>>>>>
ONTEM >>>>>
“Maria da Penha Fernandes
E Maria Madalena
Foram as protagonistas
De tão hedionda cena!
Sendo o marido a primeira
E a segunda a companheira,
Oh! Que para obscena!...
(Trecho de A mulher que casou-se com outra em Casa Amarela, de H. Rufino)

HOJE>>>>>
Era menino ou menina
Que mexia com seu coração
Era menino ou menino
Que dava mais tesão?
(...)
Ela fez de tudo um pouco
Com menina e com rapaz
Se proibir parecia bobo
Ela queria sempre mais

Escolher porque mandaram
Não mostrava sua razão
Ela queria liberdade
Para andar na contramão
(Trecho de Lampioa, vários autores)

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