'Ainda há preconceito', diz ex-padre homossexual argentino

O Argentino Wenceslao Maldonado, 74 anos, hoje em dia mais conhecido por seus poemas de teor homoeróticos, há apenas 25 anos se destacava por motivos bem diferentes. Ele era o líder provincial dos Salesianos, uma congregação da Igreja Católica Apostólica Romana fundada por São João Dom Bosco em 1859. Dedicou-se a vida religiosa dos 13 aos 50 anos e resolveu deixar o sacerdócio por sentir-se afastado do que realmente lhe interessava: a educação.

A sua história se funde em muitos pontos com a própria história da Argentina, uma vez que ele entrou para a vida religiosa simultaneamente ao Papa Francisco, além de ter vivido de perto a ditadura e a guerra das Malvinas. O capítulo mais recente de sua história se escreveu no dia 1º de agosto, quando Wenceslao, homossexual assumido desde a década de 90, casou-se, oficialmente, com o companheiro Ariel Gutiérrez, em um cartório da cidade de Buenos Aires.

Em entrevista exclusiva ao Terra, o ex-padre fala sobre as principais passagens da difícil decisão de deixar a batina e redescobrir a sexualidade depois dos 50. Confira os principais trechos da entrevista:
Como você se decidiu pela vida religiosa?
Em 1948 começou a busca do meu pai por uma escola para que eu cursasse o secundário. Sua idéia era que eu entrasse em uma escola Lasalle, mas ele somente encontrou vaga em um dos colégios salesianos, o Dom Bosco de San Isidro. Dessa escola me chamava a atenção a proximidade que eles tinham com a gente. Jogavam futebol com os garotos, era um ambiente muito agradável. Teve influência nessa decisão também um colega, Santiago se chamava. Certo dia, depois de termos ido a algumas jornadas da juventude em Córdoba em 1953, ele me informou da sua decisão de entrar ao seminário. E eu disse a ele: “Eu vou com você!”. Com apenas 13 anos escandalizei um pouco a minha família com esta decisão. No entanto, diante da minha insistência, eu consegui entrar ao seminário em 27 de dezembro de 1953, ao Aspirantado de Bernal, na rua Belgrano 280. Lá eu terminei o secundário e eu me formei professor normal. 

Você sentiu algum tipo de vocação religiosa ou foi apenas um impulso de juventude?
Com os anos eu vi que essa decisão de ir embora, era uma decisão como descontentamento com o que passava na minha casa. Meu pai era juiz, sempre teve cargos muito importantes, era um homem duríssimo, autoritário. Então, eu comparava o Colégio Salesiano, onde estavam sempre com a gente, jogavam bola conosco, e o meu pai que nem sequer nos abraçava. E isso eu fui entender depois, fazendo terapia. Dando-me conta que essa decisão representava, na verdade, a busca por uma nova ou outra família que fosse mais afetuosa. Em 1993, quando meu pai faleceu, eu não estava na Argentina. Durante esse período eu já havia deixado o sacerdócio e vivia na Itália. Esse foi o momento no qual eu resolvi voltar.

Argentino Wenceslao Maldonado, conhecido por seus poemas de teor homoeróticos, se casou com o companheiro no último dia 1º de agosto
Foto: Luciana Rosa / Especial para Terra
Quais eram as suas responsabilidades na Congregação Salesiana Argentina?
Eu comecei a dar aula em 1960, segui lecionando por muitos anos nas Escolas Salesianas, até que comecei a assumir mais e mais responsabilidades. Fui diretor do Colégio Salesiano Dom Bosco, logo fui eleito chefe provincial da Congregação Salesiana e em seguida presidente da Conferência Argentina de Religiosos (CAR). Alguns dos que foram meus alunos nessa época estiveram presentes agora no meu casamento com Ariel. 

A Guerra das Malvinas também foi um marco na sua vida, não é verdade? 
Marta, minha irmã, morreu em 1982, e eu também não estava presente porque durante a Guerra das Malvinas eu me transferi para o sul para dar suporte aos Colégios Salesianos que estavam sediados lá. Após o falecimento de Marta, eu vim a Buenos Aires para me despedir e voltei a Rio Grande em Terra Del Fuego no último voo que saiu da capital com esse destino. A partir daí, a guerra havia se intensificado muito e esse era considerado um território altamente arriscado.

Em que momento você decidiu deixar a vida religiosa?
Na minha vida de salesiano eu tinha dois pilares: a educação e  a literatura. Sobre eles eu nunca tive nenhum questionamento. Mas, a partir dos anos 70, quando começaram a atribuir a mim cargos diretivos - aos 30 anos eu já era diretor do colégio Dom Bosco, aos 40 já era vice provincial -  tudo isso foi me afastando da educação, dos meus alunos, que era o que sustentava emocionalmente. Eu sentia estar numa instituição que tinha problemas, mas como instituição que fazia parte da Igreja. Isso tudo começou na época de contestação juvenil, depois do maio francês (1968). Bom, ai veio a ditadura militar, aconteceram muitos choques. O fato do meu irmão ter tido que escapar do país por ser montonero – organização guerrilheira  peronista de esquerda -  e do meu pai ter deixado seu posto de juiz, por estar em desacordo com a ditadura, me balançaram. O impacto maior foi ver a relação perversa entre os “cabeças” da Igreja e os militares. Mesmo aqueles nos quais eu confiava estavam com os militares. Em 1982 me nomearam chefe provincial, depois presidente da Conferencia Argentina de Religiosos (CAR). Resulta que o presidente da CAR tinha direito de estar em todas as Assembléias Episcopais. Durante uma delas saiu o tema de um subsídio dos militares para os bispos. Isso tudo logo depois de perder a Guerra das Malvinas e sob o rumor de uma possível volta à democracia. Na verdade, esse era uma espécie de compra do silêncio desses bispos que estiveram ligados com a ditadura. Nessa ocasião eu escrevi uma carta para protestar contra essa decisão que, obviamente, não foi muito bem aceita por alguns dos meus companheiros. Esse foi o primeiro golpe forte que me fez começar a pensar.


E a questão da fé, quando começaste a duvidar?
Eu estive sempre acreditei que o Jesus mítico era uma construção histórica e não acredito que Jesus seja Deus. Eu comecei a pensar isso nos anos 60. Foi uma das coisas que escrevi em minha carta de renúncia à Instituição Salesiana. Segundo que a Igreja é uma estrutura de poder que cada vez quer ter mais poder e que se juntou aos Estados com esse objetivo.  Acho que isso se explica pelo fato de eu ter sido sempre muito mais um estudioso do que um crente. Hoje em dia eu prefiro acreditar em alguma entidade divina que crer em um Jesus mítico.

Como foi o processo de renúncia?
Na minha carta de renúncia eu deixei bem claro que tinha a sensação de estar afastado do que mais me motivava dentro da vida sacerdotal, ou dentro da instituição, que era o ensino. Desde muito jovem, me delegaram cargos administrativos muito importantes, os quais eu exerci com muita competência, mas que terminaram me retirando do que mais me interessava e motivava. Portanto, depois de uma série de conflitos de opinião com outras forças da Igreja Católica Argentina, como os conflitos com relação a sua ligação com a ditadura. A partir dai, eu fui me afastando cada vez mais, até decidir que não queria mais. E, depois de anos de terapia eu finalmente consegui entender o que realmente havia acontecido. Eu quis ser padre e não me arrependo, foi maravilhoso. Mas eu acho que meu desejo era fugir de uma família autoritária e que quis deixar de ser padre para fugir de uma outra estrutura autoritária. Eu não suporto o autoritarismo. Uma das prerrogativas que as pessoas precisam na vida é crescer em liberdade. Isso ensinávamos no Colégio Salesiano. Até hoje acredito que se possa encontrar escritos de membros da Igreja me chamando de traidor por haver deixado o sacerdócio, mas muita gente também, a maioria, eu diria, entendeu e me apoiou. Inclusive vários estiveram presentes no meu casamento. Já faz 24 anos que deixei o celibato, foi em 26 de janeiro de 1990 que me retirei oficialmente da instituição. Mais tarde, quando eu retornei da Itália, trabalhei novamente como professor salesiano, inclusive ajudei a fundar um Instituto Superior de Filosofia Salesiana e em 2008 me aposentei.

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Como foi a redescoberta da sua sexualidade?
Isso aconteceu quando me mudei para a Sicilia em 1990, logo apos deixar o sacerdócio. Muita gente te pergunta se quando você era padre se relacionava com algum outro homem. Eu sempre tive essa necessidade de afeto mais do que uma coisa sexual, o que não quer dizer que o sexual fique completamente separado. Então com um amigo alemão, também ex-padre começamos uma mini terapia. “Você se foi da congregação, se foi da Igreja, você é ou não livre? Qual é a dificuldade de que você pense agora o que quer fazer”, ele me dizia.  E o local onde eu estava trabalhando na Sicilia, de 90 a 93, estava cheio de brasileiros. Então, eu conheci (sinaliza em uma foto) Fábio de Conti, de família italiana, mas brasileiro de Curitiba. Meus primeiros namorados foram todos brasileiros (risos). Márcio da Silva foi outro dos meus grandes amores. Eu me apaixonei pelo Fábio, mas ele teve que retornar ao Brasil porque começou a sentir-se mal. Logo descobrimos que ele tinha o vírus HIV e, enfim, em 1995 eu, já de volta à América Latina, fui visitá-lo quando ele já estava em seu leito de morte. E descrevo esse encontro em um dos meus poemas.

Você acaba de se casar, no dia 1º de agosto com seu companheiro Ariel Gutiérrez. Como você vê as mudanças na maneira da Argentina tratar a homossexualidade. É mais fácil ser gay hoje que há 20 anos?
Me pareceu importante que nos casássemos, isso também vai defender a estabilidade de nossa relação e os interesses de cada um. Eu acho que houve grandes mudanças dos anos 2 mil para cá. Quando eu voltei para Argentina, em 1993, fazia apenas um ano que existia parada gay aqui. Eu lembro que tinha gente que vestia máscara para participar da marcha. Muitos dos fundadores do Clube de Ursos - um espécie de associação de homens gays que se auto-denominam ursos - faziam isso. Eu, como sempre escrevi, sempre trabalhei com literatura, nunca escondi as coisas que eu escrevia nesse sentido. Eu acho que as mudanças se deram mais nas questões legais, pelas quais se lutou durante um par de anos. Pela Lei de Matrimônio Igualitário se vêm lutando desde a década de 90 e que se pode aprovar com o Kirchnerismo. Hoje em dia é politicamente incorreto dizer algo contra um homossexual, por isso as pessoas têm mais cuidado. Mas, eu acho que ainda existe preconceito. No entanto, as novas gerações já não saem mais em guetos, onde os gays estejam somente com gays, os héteros com héteros, eles querem ir a lugares mistos, onde possam ser livres. As gerações anteriores não, elas acabam se isolando em lugares destinados ao publico homossexual.

Entre outros aspectos curiosas de sua história, está o fato de que Jorge Mario Bergoglio, hoje o Papa Francisco I, foi seu contemporâneo no exercício do sacerdócio. Ele chega a citá-lo em um livro de memórias dizendo que você foi uma das boas amizades que fez nas férias anteriores quando finalmente ingressou na vida religiosa. Como era essa relação, se é que existiu?
Nós nos conhecemos em janeiro de 1959 em Tandil. Ele era seminarista do seminário de Villa Devotto, do clero secular de Buenos Aires, mas o seminário estava comandado pelos jesuítas e ele tinha se entusiasmado com os jesuítas, apesar de ser seminarista da arquidiocese de Buenos Aires. Naquele momento ele havia sido operado de um pulmão e estava se recuperando, então veio com a gente à Villa Don Bosco de Tandil, trazido por Mario Pippi. Nós ficamos amigos. Quando me mandaram em 1952 à Itália, nós trocávamos cartas frequentemente. Depois de curado, ele entrou para a ordem dos jesuítas, os quais tem uma formação longa, o que o levou a se ordenar um pouco depois de mim. Durante o seu mandato como arcebispo de Buenos Aires nós tivemos uma espécie de conflito silencioso, porque eu era diretor da CAR e para Bergoglio essa entidade tinha um forte teor político. Segundo suas convicções a fé deveria estar a serviço dos pobres, mas nunca envolver-se com a política. À partir disso, nossa relação nunca mais passou de atos de cordialidade.

Maldonado assumiu a homossexualidade na década de 90
Foto: Luciana Rosa / Especial para Terra




Conhecendo-o e vendo suas iniciativas durante seu primeiro ano de pontificado, você acredita que ele poderá mudar a postura da Igreja Católica no sentido de chegar a reconhecer o matrimônio homo afetivo?
Eu acho que a Igreja poderia chegar a mudar porque isso não é nenhum dogma de fé. Mas, o ponto-chave é que Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, dogmaticamente não vai mudar. Ele é dogmático. O que eu acho que ele tem é o dom da oportunidade. Ele possui um carisma que consegue romper os protocolos diplomáticos. Eu acho que Bergoglio é um reformista porque ele tem convicções. Como isso que eu te dizia de que os padres não se devem meter em política, mas que trabalhem pelos pobres, é uma questão de convicção. Ou que o arcebispo não pode estar andando em um carro de último modelo, tem que andar de ônibus como as pessoas comuns. Mas a mudança profunda eu não sei se poderá dar agora. Ele tem abertura a outros credos religiosos, por exemplo, mas isso não significa um sinal de que uma mudança radical esteja próxima. Não sei, daí para adiante, é preciso ser adivinha para saber o que irá acontecer. 


Especial para Terra

fonte http://noticias.terra.com.br/mundo/america-latina/ainda-ha-preconceito-diz-ex-padre-homossexual-argentino,314fa7d6046c7410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html

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